O modo como consumimos esporte vem se transformando ao longo do tempo. Se antes as mídias tradicionais se dividiam entre imprensa escrita, rádio e televisão, pautando e filtrando os conteúdos aos quais os torcedores tinham acesso, a inclusão digital mudou tudo.
A exigência do público por materiais novos e diferentes do habitual passou a ser uma demanda direta e constante, ao mesmo tempo em que os meios de comunicação e os dirigentes de entidades esportivas viram nas novas mídias grandes oportunidades de capitalizar.
E é exatamente nesse contexto que estão inseridas as transmissões da Fórmula 1 no Brasil.
A principal categoria do automobilismo mundial possui público cativo no país. Detentor de oito títulos de pilotos (dois com Emerson Fittipaldi, em 1972 e 1974; três com Nelson Piquet, em 1981, 1983 e 1987; e três com Ayrton Senna, em 1988, 1990 e 1991), o Brasil é um grande mercado consumidor da Fórmula 1, o qual foi desenvolvido e explorado pela Rede Globo e seus patrocinadores ao longo de 40 anos de transmissões.
Nos últimos tempos, o Grupo Globo vinha dividindo a programação de Fórmula 1 entre seus três canais esportivos da TV fechada (canais SporTV) e suas plataformas online, deixando apenas as transmissões das corridas para o canal de TV aberta, de maior alcance para o público e de maior visibilidade para os patrocinadores.
Apesar das publicações no globoesporte.com e de esforços como o podcast Na Ponta dos Dedos, a ausência de uma maior cobertura para além das transmissões dos Grandes Prêmios vinha sendo sentida pelos consumidores do esporte, que passaram a ter de buscar em outros canais informações de bastidores e até mesmo a transmissão das cerimônias de premiação.
Não tratar a F1 como um dos maiores eventos esportivos do mundo gerou irritação por parte dos fãs e também por parte da Liberty Media, empresa responsável por negociar os direitos de transmissão da categoria.
E o desgaste não vem de hoje. Em postagem do dia 30 de janeiro de 2017, a jornalista Julianne Cerasoli, que cobre a Fórmula 1 in loco há mais de uma década, escreveu em seu blog:
Nos primeiros dias de reinado da Liberty Media, (…) foram dadas inúmeras indicações dos caminhos que os novos donos buscarão nos próximos anos. Sabendo que os contratos com os times estão blindados até 2020, os dirigentes falaram mais em mudanças nos eventos em si, sua forma de promoção e sua presença no mundo digital, além de alterações nas diretrizes das regras esportivas e técnicas.
(…)
O novo comandante da parte comercial já prometeu ‘uma estratégia bastante agressiva’ no campo digital, algo de que o esporte precisa para ontem. Há quem receba com ceticismo a possibilidade de liberação de streaming pela internet devido aos atuais contratos com as TVs e é bem provável que a política mude de país para país, mas é de se esperar um investimento em campeonatos virtuais e tudo o que aproxime os fãs dos eventos.
Mais recentemente, em postagem do dia 06/02/2021, o colunista do UOL Gabriel Vaquer registrou:
A saída definitiva da Globo após 40 anos na Fórmula 1 passa muito mais pelo relacionamento desgastado da emissora com a Liberty Media, dona da categoria, do que por qualquer outra coisa. (…) Desde que comprou a categoria em 2016 por US$ 8,5 bilhões (R$ 45,7 bilhões na cotação atual), a Liberty nunca foi a maior fã da forma como a Globo tratava a categoria nos últimos anos. A falta de exibição em TV aberta dos treinos oficiais nas manhãs de sábado, cortes do pódio com transmissão restrita para a internet e algumas corridas cortadas por bater de frente com o horário do futebol sempre foram alvos de crítica.
A Globo até queria renovar com a Fórmula 1. O campeonato mundial de pilotos sempre foi uma de suas bandeiras e lhe rendia ótimo faturamento, mesmo não tendo mais a audiência de outrora. E a emissora foi generosa para os tempos de pandemia do novo coronavírus: manteve uma proposta de US$ 10 milhões por ano (R$ 53,7 milhões) quando começou a renegociar pela segunda vez a questão, em novembro de 2020. Antes da pandemia, a Globo havia oferecido US$ 20 milhões (R$ 107.4 milhões). Mesmo assim, a Liberty não quis por desacordos. O principal deles era o streaming F1 TV Pro. A Globo não aceitava fechar contrato com a Liberty lançando seu próprio serviço para transmitir as corridas no Brasil. Quem é fã de carteirinha da categoria sabe que o Pro já está em diversos países e que o Brasil só estava fora justamente por esse acordo comercial com a maior emissora do país. A Liberty, por sua vez, não queria abrir mão desse lançamento para 2021.
(…) a Liberty nunca quis sair da TV aberta. Hoje, a F-1 tem poucas TVs abertas exibindo corridas no mundo. O Brasil é o segundo maior mercado de alcance de público da categoria, perdendo apenas para a China por causa do número de habitantes do país. Estar na TV aberta brasileira influencia na hora de fechar as contas da categoria no fim do ano.
De fato, além de não dar o destaque de outrora à Fórmula 1, a Rede Globo não abriu mão da exigência de exclusividade das transmissões em território nacional, o que conflitou com os planos da Liberty Media em relação à plataforma de streaming F1 TV Pro.
Para quem ainda não está familiarizado com o tema, streaming “é a tecnologia de transmissão de áudio e/ou vídeo pela internet, a qual permite que a transmissão (…) seja realizada sem a necessidade de se fazer o download de todo o conteúdo a ser transmitido antes de se ouvir a música ou assistir ao vídeo”[1].
Diante da não renovação do contrato com a Globo, o Grupo Bandeirantes, que continuava transmitindo as corridas por meio de sua emissora de rádio, aproveitou a oportunidade e adquiriu os direitos de transmissão da Fórmula 1 no Brasil, concordando em dividir o mercado com o serviço oficial de streaming da Liberty Media.
Curiosamente, quem intermediou as negociações entre o Grupo Bandeirantes e a Liberty Media foi Jayme Brito, que, durante muitos anos, foi o produtor executivo da Fórmula 1 do Grupo Globo. Sim, assim como os carros de corrida, o mundo dos negócios no esporte dá voltas!
O streaming e as transmissões de televisão tradicionais ainda possuem espaço e alcance próprios, embora exista uma tendência de que, nos próximos anos, a balança venha a pender em favor dos chamados serviços over the top (OTT).
Os serviços OTT, grosso modo, são aqueles difundidos por meio de plataformas de distribuição de conteúdos pela internet, nas quais o usuário assiste sob demanda. É o caso do YouTube, Netflix, Apple TV e das plataformas de streaming dos próprios donos/promotores dos eventos.
Em 2018, estimava-se que, mundialmente, os serviços OTT alcançariam, no ano de 2021, aproximadamente US$ 64 bilhões de faturamento, sendo US$ 3,59 bilhões apenas entre Brasil e México, que ocupam, respectivamente, o quarto e quinto postos globais nesse mercado.
Além da comodidade e agilidade de poderem ser acessados por dispositivos móveis em qualquer lugar e em qualquer momento, os serviços OTT permitem ao consumidor escolher, com muito mais liberdade em relação à programação de TV, os conteúdos que serão assistidos.
Nessa linha, a plataforma de streaming F1 TV Pro apresenta uma infinidade de conteúdos antes não disponíveis ao público brasileiro.
Além de acompanhar as corridas, sessões de classificação e treinos livres ao vivo, o fã terá acesso a uma infinidade de câmeras exclusivas (até mesmo aquelas instaladas nos capacetes e nos carros), podendo ainda ouvir as conversas de rádio entre pilotos e equipes.
Em resumo, para quem se dispuser a pagar algum dos planos de assinatura da F1 TV Pro, será possível ter a visão de seu piloto favorito durante os Grandes Prêmios, somada a conteúdos diferenciados como corridas históricas e inúmeras estatísticas.
A propósito, a Fórmula 1 já faz sucesso em outra plataforma de streaming.
Desde 2019, a Netflix possui em seu catálogo a série Drive to Survive, que exibe os bastidores do “circo da Fórmula 1”, com direito a diálogos internos das equipes, logística das viagens e diversas outras informações que as transmissões tradicionais pela TV não eram capazes de captar e oferecer ao público.
Certo é que o streaming da Fórmula 1 é mais um exemplo da grande variedade de opções que o fã de esportes tem hoje ao seu dispor, sendo uma ferramenta muito valiosa para a fidelização de um consumidor específico e ávido por conteúdos exclusivos.
Com o perdão do trocadilho, é no giro dessa roda que os atores do mercado de negócios no esporte encontrarão maneiras cada vez mais eficientes de gerar receitas. Ainda há muito o que explorar.
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*Fotos: Divulgação F1 TV Pro e Netflix
[1] MACEDO, Alberto. A tributação de streaming de áudio e vídeo: Guerra fiscal entre ISS e ICMS. In: MONTEIRO, Alexandre. FARIA, Renato. MAITTO, Ricardo. Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, sec. C, p. 504-521
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