Frank Vogel (treinador), Anthony Davis, LeBron James e Quinn Cook ouvem o hino norte-americano de joelhos antes de um jogo dos Lakers pela NBA. Foto: Kevin C. Cox /AP.

Nos últimos anos, as pautas sociais vêm ganhando corpo nos discursos e atitudes de atletas das mais diferentes modalidades.

Para ilustrar essa realidade, podemos apontar a forte reação de LeBron James, no início de 2018, à infame frase “Shut up and dribble” (Cale a boca e drible) dita pela jornalista Laura Ingraham ao comentar uma entrevista na qual o astro da NBA, dentre outros assuntos, abordara os desafios que uma figura pública negra tinha de enfrentar nos EUA do então presidente Donald Trump (em maio de 2017, uma injúria racial foi pichada na porta da residência de LeBron em Los Angeles).

Em 2020, o piloto inglês Lewis Hamilton foi bastante vocal ao longo de toda a temporada da Fórmula 1, chamando a atenção para a ausência de negros entre pilotos, mecânicos e dirigentes da categoria e direcionando os holofotes para a luta contra o racismo.

Como um reflexo do ativismo do heptacampeão mundial, a tradicional cor prata dos carros da Mercedes, equipe para a qual ele guia, foi substituída pela cor preta e a montadora passou a adotar o slogan “Racing by diversity and inclusion” (Correndo por diversidade e inclusão).

Além disso, na abertura da temporada, disputada na Áustria no início de julho, Hamilton convidou os demais pilotos a vestirem camisetas com frases contra o racismo e a se ajoelharem antes da largada, em um gesto simbólico que foi repetido em outras provas do campeonato.

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Lewis Hamilton, da Mercedes, lidera o gesto simbólico dos pilotos da Fórmula 1 antes do Grande Prêmio da Grã-Bretanha na temporada 2020. Ao seu lado, Nicholas Latifi (da Williams), à esquerda, e Sebastian Vettel (então piloto da Ferrari), à direita. Foto: Bryn Lennon/Getty Images

A mobilização liderada por Hamilton resultou em uma campanha promovida pela Federação Internacional de Automobilismo (FIA) intitulada “We race as one” (Nós corremos como um, frase que brinca com a palavra race, que se refere tanto ao verbo correr quanto ao substantivo raça). O intuito da campanha é incentivar a diversidade racial e de gênero e combater a homofobia no automobilismo.

Também em julho de 2020, a “bolha da NBA” organizada nas instalações do Walt Disney World, em Orlando, foi palco de inúmeras manifestações de atletas em apoio ao movimento Black Lives Matter, as quais continuaram ecoando para além das quadras.

O Brasil também vivenciou um episódio dessa natureza no agitado mês de julho de 2020. Depois de uma fala racista de um comentarista de rádio, o atacante Marinho, do Santos, publicou uma nota em rede social e gravou um vídeo no qual, emocionado, desabafou: “Não podemos deixar passar, sei o valor que eu tenho. (…) Antigamente não tinha voz ativa, passava desapercebido. Muita gente que não tem voz ativa baixa a cabeça e anda. Eu brigo pela causa porque tenho voz. E isso só mostra que quem não tem voz passa por coisa pior. A gente tem aceitado muito ainda. Justiça não pune os preconceituosos, vermes. Mas Deus perdoa, cara. Fica em paz.

O futebol brasileiro já foi palco de episódios relacionados ao racismo, como no caso Grafite x Desábato, em 2005, na exclusão do Grêmio da Copa do Brasil em 2014 por ofensas raciais de torcedores contra o goleiro Aranha e na recente discussão envolvendo o meia Gérson, do Flamengo, em partida contra o Bahia pelo Campeonato Brasileiro de 2020.

Também houve ocorrências em território estrangeiro, como a vivida pelo ex-atleta Tinga em uma partida da Copa Libertadores de 2014 disputada no Peru quando ele atuava pelo Cruzeiro, e agressões em redes sociais, como os ataques relatados por Fred, do Manchester United, no mês de março de 2021 após partida disputada pela Copa da Inglaterra.

Situações como essas e incontáveis outras que não chegam às manchetes levaram à criação do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que tem como objetivo “monitorar e divulgar, através de seus canais, os casos de racismo no futebol, assim como ações informativas e educativas que visem erradicar a intolerância que tanto macula a democracia das relações sociais”.

Outro projeto atinente ao racismo no esporte é o perfil do Instagram Esporte e Raça, idealizado pelos jornalistas Josias Pereira e Henrique Frederico Cruz para “discussão, debates, entrevistas e informações sobre a relação do negro no esporte e a importância do meio como plataforma para dar voz à luta (…) por igualdade e justiça social”.

Convidamos o Josias Pereira para conversar conosco sobre os impactos causados aos negócios no esporte pelo ativismo social de atletas em relação às questões raciais. Falamos também sobre eventos que marcaram a história da NBA, da NFL, da Fórmula 1 e dos Jogos Olímpicos e sobre formas de as entidades esportivas profissionais abarcarem essa pauta em suas estruturas de negócio.    

Confira como foi o papo!

Blog: Em 2003, a NFL aprovou a Rooney Rule, que obriga as franquias da liga a entrevistarem candidatos de minorias étnicas para cargos de direção. Essa ação afirmativa, que passou a ser adotada também pela Federação Inglesa de Futebol a partir de 2018, está baseada na premissa de que esportes que têm tantos negros como protagonistas dentro dos campos não podem dar menos oportunidades a negros em outras posições. Para ilustrar, na temporada 2019-2020, as minorias étnicas representaram 70% dos jogadores e menos de 13% dos cargos diretivos na NFL, incluindo treinadores.

A Rooney Rule foi alterada em maio de 2020 para abranger a necessidade de as franquias entrevistarem candidatos de minorias e/ou mulheres para cargos executivos seniores em comunicações, finanças, recursos humanos, jurídico, operações de futebol, vendas, marketing, patrocínio, tecnologia da informação e segurança.

Estabeleceu-se também um programa de bolsas para que ex-jogadores, candidatos de minorias e mulheres possam se qualificar para pleitear cargos diretivos técnicos (treinadores e coordenadores).

Porém, uma das mudanças propostas, de melhoria da posição no draft (recrutamento de atletas universitários) para as franquias que contratassem treinadores ou diretores de minorias foi rejeitada, assim como não foi aprovada a ideia de compensações adicionais via draft em contrapartida à contratação de candidatos de minorias para funções como treinador de quarterbacks.

Na sua visão, iniciativas como a Rooney Rule ainda esbarram em interesses competitivos/econômicos dos “donos” dos negócios no esporte? Só é possível que uma ação afirmativa seja realmente efetiva se ela tiver de valer independentemente de outros interesses?

Josias Pereira: Creio que iniciativas como a Rooney Rule são bastante benéficas para a inclusão no meio esportivo. Ressalto, aqui, que os norte-americanos não apenas determinam tais medidas, mas dão condições para que os candidatos se qualifiquem no mercado para concorrer às vagas disponíveis.

Um dos exemplos recentes é de Jennifer King, primeira assistente técnica negra em tempo integral na NFL, contratada pelo Washington Football Team. King passou por um programa da liga chamado ‘NFL Women’s Career in Football’, que abriu caminho para sua entrada no futebol americano profissional aliado à especialização que já possuía no campo desportivo. Mas ainda é perceptível que mais avanços precisam acontecer.

Tenho visto que a NFL passou a ser uma liga mais progressista, porém seus donos ainda possuem uma característica conservadora, diferentemente do engajamento da NBA. Até poucos dias, a MLB, a liga de beisebol do país, decidiu retirar seu jogo das estrelas de Atlanta por causa de uma lei que alterava a forma de votação no estado da Geórgia, um dos polos da acirrada disputa política entre Joe Biden e Donald Trump.

O caminho ainda é muito longo, mas o recado quanto à responsabilidade que os donos possuem perante a sociedade vem sendo dado. O esporte não pode se limitar à sua “bolha” e mesmo que os interesses comerciais prevaleçam, eles estão sujeitos à opinião pública.

Até pouco tempo, o Washington Football Team se chamava Washington Redskins (em tradução livre, “Os Pele-vermelha de Washington”), um sinônimo da intolerância e preconceito racial aos nativos norte-americanos. O time, com um passado ligado a um proprietário extremamente racista, teve que ceder após décadas de críticas. Uma mudança de fora para dentro, decisiva com o apoio da FeDex, até então uma das proprietárias da franquia.

As ações afirmativas não precisam diretamente da anuência dos donos, pois em algum momento nessa queda de braço eles terão que ceder. A própria NFL demonizou Colin Kaepernick com seu ato de ajoelhar-se durante o hino nacional e depois se arrependeu do ato, pedindo desculpas ao atleta.

Ou seja, invariavelmente, as ligas terão que responder ao anseio da opinião pública. O mundo atual clama por mudanças sistemáticas. O esporte não está alheio a isso.

Blog: Em 2014, manifestações racistas registradas em uma gravação de áudio feita pela ex-namorada de Donald Sterling, então proprietário do Los Angeles Clippers, causou imensa reação na sociedade norte-americana, provocando, inclusive, manifestações de Barack Obama, presidente do país na ocasião.

Poucos dias depois, a NBA iniciou uma investigação que culminou com o banimento perpétuo de Donald Sterling da liga, com uma multa de US$ 2,5 milhões e com a obrigação de venda da franquia (que acabou sendo adquirida por Steve Ballmer, ex-CEO da Microsoft, por US$ 2 bilhões).

Em que medida uma decisão como a adotada pela NBA, que “mexeu no bolso” de uma pessoa poderosa e teve imensas repercussões econômicas (o Clippers já havia perdido patrocínios milionários em razão do fato), é capaz de produzir efeitos concretos na luta contra o racismo? Você acredita que mecanismos regulatórios específicos, como a Rooney Rule, e sanções como a aplicada a Donald Sterling, seriam viáveis no esporte brasileiro?

Josias Pereira: Sempre defendi que punições para racismo no esporte precisam ser exemplares. O que a NBA fez foi extremamente significativo dentro do cenário esportivo mundial. Em uma liga em que mais de 74% dos atletas profissionais são negros, tais atitudes não seriam toleradas e poderiam desencadear uma resistência de repercussões colossais.

A decisão da NBA foi um recado, comprovando o espírito progressista da liga, e contribuiu como um marco na luta antirracista, mexendo na estrutura de uma das franquias mais tradicionais do certame.

Se isso seria possível no esporte brasileiro? Creio que as regulamentações são impeditivos e as punições no país são extremamente brandas. Isso traz um senso de impunidade que é o reflexo do sistema judiciário para tais casos.

As estruturas do futebol brasileiro, por exemplo, não trazem a figura de um responsável direto pelos atos de torcedores e atletas, pois os presidentes possuem um posto de responsabilidade judicial quase nulo, o que favorece várias possibilidades de desvio financeiro.

Enquanto a regulamentação não for modificada, não houver o incentivo à presença de mulheres, negros e a comunidade LGBTQIA+ nos conselhos, ou seja, nos órgãos diretivos que realmente são capazes de definir os rumos das instituições, o esporte (e especialmente o futebol) brasileiro seguirá comandado por homens brancos, de classe média a alta, muitas vezes desconectada com a realidade da maioria da população nacional e totalmente avessa às mudanças que norteiam o profissionalismo do esporte.

A gestão esportiva no Brasil é tratada, muitas vezes, como caridade. Mas os clubes, urgentemente, precisam responder por seus atos, dos fiscais e tributários ao comprometimento que precisam ter na luta antirracista.

Blog: A partir do que você constata em seu trabalho no Esporte e Raça e em outras atividades, você considera possível e relevante examinar o quanto o ativismo social de atletas contribui ou prejudica, em termos de audiência, atração de patrocínios e outras métricas econômicas, os negócios esportivos mundo afora?

A constatação e divulgação de que não há prejuízos, por exemplo, em relação aos negócios da NBA ou da Fórmula 1 por conta da atuação social de LeBron James e Lewis Hamilton pode ajudar a impulsionar outras ações afirmativas?

Josias Pereira: Creio que os atletas ainda possuem receio de se manifestarem e não serem compreendidos pela opinião pública. Falta ainda a base de tudo: o conhecimento. Não há como expressar-se em meio a temas tão profundos sem realmente compreender o motivo da luta.

Crescidos na periferia, a falta de uma educação de qualidade e o envolvimento tão precoce no mundo esportivo fazem com que esses atletas tenham uma percepção de mundo muito diferente. A realidade deles é outra e, como sabemos, tudo vem muito rápido. De repente, um garoto pobre é um esportista que recebe todos os holofotes.

O deslumbramento e a falta de pertencimento àquela luta confundem e, infelizmente, laços não são criados. Mas o atleta, a meu ver, possui a responsabilidade moral de também ser um canal de informação para a sociedade, exemplo aqui do jovem atacante Richarlison, do Everton. E como LeBron ou Hamilton, Richarlison não fragiliza sua imagem perante patrocinadores ou opinião pública por se manifestar sobre temas de relevância na sociedade.

No Brasil, tem-se observado que os clubes de futebol é que têm procurado se posicionar sobre os temas, uma cadeia reversa. Creio eu que a CBF, os clubes, o Comitê Olímpico Brasileiro e Federações precisam fornecer mecanismos de capacitação e conscientização social aos atletas. Seria uma ótima forma de ensino: um curso sobre racismo como o que o COB está promovendo atualmente. 

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Após ter o contrato rescindido com o San Francisco 49ers, Colin Kaepernick nunca mais conseguiu retornar à NFL, o que é largamente atribuído ao fato de ele haver liderado protestos durante a execução do hino norte-americano antes das partidas da liga. Foto: Reuters.

Blog: Em sua opinião, qual foi o legado deixado pelo caso Colin Kaepernick, atleta da NFL que passou a se ajoelhar durante a execução do hino nacional dos Estados Unidos antes do início das partidas em protesto diante da violência policial contra negros no país?

Depois de deixar o San Francisco 49ers, Kaepernick nunca mais encontrou emprego na NFL, apesar de seu sucesso esportivo anterior e de possuir condições técnicas, em tese, suficientes. Você considera que o fato de o atleta ter feito um acordo extrajudicial sigiloso com a liga para encerrar o litígio em que ele acusava um boicote por parte dos donos das franquias enfraqueceu de alguma forma a luta travada por ele e por outros colegas?

Josias Pereira: Para mim, Colin foi um marco. E continuará sendo. Não à toa, foi considerado uma das figuras mais influentes do mundo. Os desdobramentos profissionais foram a consequência de sua manifestação, comprovando de forma indubitável a falha da liga e seus representantes ao não se atentarem ao clamor da sociedade.

Na última temporada, a NFL teve que ceder a diversas manifestações de atletas, motivada pelo caso George Floyd, infelizmente assassinado com a pressão de um policial ajoelhado sobre seu pescoço. Colin surgiu como um prenúncio e abriu caminho para que a liga repensasse suas atitudes. Abriu caminho para que muitos outros atletas, sem o peso da punição, se manifestassem. Não gosto da martirização, mas sempre há a necessidade de precursores. Colin, sem dúvida, foi um.

Blog: Em 2018, o apresentador Tiago Leifert causou polêmica com um artigo na GQ sobre posicionamentos políticos de atletas. Nas palavras dele, “evento esportivo não é lugar de manifestação política”. De lá para cá, algo mudou? A pauta é tratada com a mesma seriedade e profundidade do que pautas econômicas e das competições propriamente ditas ou as aparências enganam?

Josias Pereira: Tiago errou muito em seu posicionamento. Pelo que li recentemente, chegou até mesmo a modificar o artigo publicado. Eu vejo com muita preocupação a forma como o tema racismo é abordado no país. Creio que o assunto é difundido, mas pela conjectura atual do governo, ele é tratado com desdém por uma parcela da população que sintetiza a luta do negro ao ‘mimimi’, um odioso termo que remete ao que eles chamam de ‘vitimismo’.

Sob a bandeira do ‘que sociedade chata, não se pode brincar com mais nada’, tais pessoas minimizam o atrito e repercutem em suas falas o racismo estrutural deste país, um dos mais racistas do mundo.

Aqui, os crimes raciais são cometidos de forma silenciosa. Está no olhar, no jeito, na privação aos direitos básicos e, mais uma vez, apoiado por leis brandas e processos de injúria racial que não se desenrolam. O racismo no futebol brasileiro é também uma constante, há dados que comprovam o aumento substancial nos últimos anos.

Mas, como já coloquei em debate, as punições são brandas e os casos perdem repercussão sem que toda a sociedade saiba o desfecho. Para mim, os clubes deveriam agir com mão firme. Punir torcedores para toda a vida, assim como a Justiça Desportiva deveria fazer sua parte e penalizar clubes e dirigentes com exclusões e perda de benefícios.

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Peter Norman, Tommie Smith e John Carlos no pódio na Cidade do México, em 1968. Foto: John Dominis/Getty Images

Blog: Em termos de simbolismo e de impactos socioeconômicos, os recentes movimentos contra o racismo capitaneados por atletas de renome tendem, com o alcance global e instantâneo propiciado pelas redes sociais, a gerar resultados mais concretos do que os históricos gestos de Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de 1936 e de Tommie Smith e John Carlos nos Jogos Olímpicos de 1968?    

Josias Pereira: Com certeza. Os atletas atuais possuem muito mais capacidade de influenciar uma geração com seus exemplos do que ícones como Jesse Owens, Tommie Smith e John Carlos. A importância do esportista no ensinamento e na mudança de concepção de seus seguidores e admiradores é muito mais educativa do que, talvez, uma palestra sobre o tema. Que possam surgir mais e mais Hamiltons e LeBrons.


Diante de uma pauta tão importante, trouxemos para debater conosco um influenciador ativo sobre o tema. Nos sentimos inspirados a tentar modificar o status quo para que injustiças e crimes cometidos no ambiente esportivo não saiam impunes.

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