Olá, leitor!

Estamos inaugurando uma nova forma de produção de conteúdo para o blog, que é o convite para que outros colegas e entusiastas dos temas que abordamos por aqui escrevam conosco.

Nesta estreia, convidamos o amigo Wladimir Dias para falar sobre a última edição da Eurocopa, cuja final entre Inglaterra e Itália completa 1 mês neste dia 11 de agosto de 2021.

O Wladimir é graduado em Direito pela PUC Minas, Mestre em Jornalismo Esportivo pela universidade espanhola CEU-San Pablo (em parceria com o jornal Marca), Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e pós-graduando em Negócios no Esporte e Direito Desportivo pelo CEDIN. Além de conduzir o excelente blog O Futebólogo, nosso convidado escreve na Revista Relvado e no Doentes por Futebol, além de ter colaborado com as revistas Corner e Placar e com os portais Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC e These Football Times.

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Era ainda o dia 6 de dezembro de 2012, quando a Uefa confirmou: “A Euro 2020 será realizada em todo o continente, em várias cidades grandes, na sequência de uma decisão tomada hoje. A Euro para a Europa segue uma ideia original do presidente da Uefa, Michel Platini”.

À época, a justificativa central para a decisão foi a desnecessidade de investimentos robustos em obras de infraestrutura, ante um cenário de crise econômica, já que os países-sede teriam que construir, no máximo, um aeroporto e um estádio de futebol. Os anos se passaram e a competição se viu atravessada pela pandemia do Coronavírus. O adiamento para 2021 foi inevitável, mas não aplacou a sede por uma competição mais plural — elevando seu caráter continental de uma forma inédita na Europa.

O caminho até o princípio da Euro 2020 não foi rápido.

Em abril de 2014, a Uefa divulgou a lista final de cidades postulantes à sede. Em um primeiro momento, Minsk, Sofia, Skopje, Jerusalém, Estocolmo e Cardiff foram eliminadas. Em 2017, diante da incerteza acerca da construção de um estádio em Bruxelas, a capital belga também foi limada. Assim, a Uefa estava preparada para ter suas bases em Baku, Copenhagen, Dublin, Munique, Budapeste, Roma, Amsterdã, Bucareste, Glasgow, Bilbao, São Petersburgo e Londres.

De última hora, em abril de 2021, Dublin foi cortada, por razões sanitárias. Poucos dias depois, o mesmo destino atingiria Bilbao, que não poderia receber público e foi substituída por Sevilha.

Dentre os países contemplados, apenas o Azerbaijão não se classificou à Euro. Sem tradição esportiva e com histórico de desrespeito aos direitos humanos, o país foi acusado, inclusive pela Human Rights Watch, de utilizar o esporte para “lavar” sua degradada imagem, piorada, especialmente, em razão dos conflitos na região de Nagorno-Karabakh. Baku já havia sediado, dentre outros eventos, a final da Liga Europa de 2019, entre Arsenal e Chelsea, quando o armênio Henrikh Mkhitaryan, então jogador dos Gunners, optou por não ir, temendo por sua segurança. De todas as formas, Baku permaneceu como uma das sedes.

Um torneio, 11 sedes, 24 disputantes e 26 jogadores por elenco (três a mais do que o padrão): assim se consolidou a Euro 2020.

Tudo começou na Cidade Eterna, em Roma. Com ares épicos, contando com a participação do tenor italiano Andrea Bocelli, a estreia opôs dois países intimamente ligados em termos históricos. De um lado, Itália; do outro, Turquia — que podem ser identificadas como as representantes modernas do Império Romano/Bizantino, sem olvidar o Império Otomano, formado depois de os turcos reconquistaram seu território. No campo de jogo, entretanto, a Azzurra varreu as Ay-Yıldızlılar.

No dia seguinte, a competição foi confrontada com seu momento mais difícil. Quando as rivais nórdicas, Dinamarca e Finlândia, enfrentavam-se em Copenhagen, o astro da equipe da casa, Christian Eriksen, sofreu morte súbita. Mas foi reanimado, e se recupera. Naquele momento, acumularam-se demonstrações de solidariedade. O registro em que o capitão dinamarquês, Simon Kjaer, e o goleiro Kasper Schmeichel consolaram a esposa de Eriksen foi emocionante, assim como a comunhão das vozes dinamarquesas e finlandesas presentes no estádio, em respeito ao craque combalido.

Aliás, um ponto central para o sucesso da competição foi o retorno do público aos estádios. Cada sede teve suas próprias regras, mesmo que nem sempre devidamente observadas. Ainda assim, a sensação de uma nova normalidade transbordou pelos estádios, perfazendo um símbolo de esperança em dias melhores — em que pese o fato de que, mais tarde, a Organização Mundial da Saúde constatou que o intenso tráfego de pessoas mobilizado pela Euro 2020 conduziu ao aumento no número de casos de Covid-19 pela Europa.

E nem tudo foram flores no contexto da disputa. Dias antes de a Hungria receber Portugal em sua primeira partida, o Parlamento Húngaro aprovou uma lei que baniu a “promoção” de conteúdos relativos às minorias LGBTQIA+ nas escolas do país. A reação negativa internacional foi rápida, mesmo porque, após a partida, foram vazados vídeos em que torcedores húngaros proferiram gritos como “Cristiano [Ronaldo], homossexual!”.

Dentro da Euro, uma tentativa de resposta foi arquitetada pela Alemanha. Antes de receber os magiares, aventou-se a ideia de a Allianz Arena, em Munique, exibir as cores da bandeira do Orgulho Gay durante o confronto entre húngaros e germânicos, em apoio às minorias ameaçadas pela medida tomada na Hungria. A Uefa, alegadamente “apolítica”, vetou a possibilidade.

De todas as formas, quando a bola rolou, os alemães venceram e Leon Goretzka, autor de um de seus gols, comemorou usando as mãos para mostrar um coração na direção dos ultras húngaros. Depois, em suas redes sociais, o meia confirmaria seu posicionamento, com os dizeres “espalhe o amor”. Também o goleiro Manuel Neuer se manifestou, envergando na braçadeira de capitão as cores da citada bandeira do Orgulho Gay.

Conselho Municipal de Munique foi duro em suas declarações públicas: “É importante […] definir um sinal visível de solidariedade à comunidade LGBTQIA+ na Hungria, que está sofrendo com a atual e estrita legislação homofóbica e transfóbica do governo Húngaro”. Mais tarde, a Uefa acabou punindo a Hungria por conta de certas ações inaceitáveis de seus apoiadores, definindo que o país jogará seus próximos três jogos em casa com portões fechados.

Essa não foi a única vez em que manifestações de preconceito foram vistas durante a Euro 2020. Em Baku, na partida de quartas de finais entre Dinamarca e República Tcheca, um torcedor teve sua bandeira do Orgulho Gay recolhida por um steward. “Um guarda veio e tomou a bandeira das minhas mãos”, contou Kristoffer Føns, o torcedor envolvido na conduta abusiva perpetrada na capital azeri.

Além de manifestações de discriminação de gênero, a competição também se viu confrontada com preconceito étnico-racial. Inclusive dentro dos campos. Na partida disputada por Áustria e Macedônia do Norte, em Bucareste, o austríaco Marko Arnautovic anotou o terceiro tento de seu país, no triunfo por 3 a 1. Na comemoração, o atacante, que tem origens sérvias, teria provocado o macedônio Ezgjan Alioski. Entendendo que Arnautovic “insultou outro jogador”, a Uefa o puniu com a suspensão de um jogo. No rescaldo dos acontecimentos, o próprio atleta chegou a se manifestar, através de suas redes sociais, assegurando, em caixa alta, que não é racista.

A propósito, antes mesmo do início da competição, já se sugeria que o racismo, e, consequentemente, o antirracismo estariam em voga no mês de disputas. Às vésperas do começo da Euro 2020, a Federação Croata de Futebol determinou que seus atletas estariam livres para se ajoelhar em apoio ao movimento antirracista (que ganhou força após o brutal assassinato de George Floyd nos EUA, originando o movimento “Black Lives Matter”), ou não, antes das partidas. Nesse sentido, assegurou que o gesto “não possui simbolismo na luta contra o racismo e a discriminação no contexto da cultura e tradição croatas”. A crítica não recebeu bem a hesitação dos axadrezados.

Antes da estreia dos croatas frente à Inglaterra, pesquisa promovida pela empresa Ipsos Mori revelou que 48% dos ingleses eram favoráveis às manifestações antirracistas, contra 27% contrários. Essa realidade foi vista no estádio de Wembley. Antes de a partida começar, uma minoria dos presentes na casa do futebol inglês vaiou os próprios representantes dos Three Lions, quando estes se ajoelharam. A maioria sufocou tais manifestações com aplausos. Na mesma ocasião, o hino croata foi vaiado por parte dos espectadores. As reações já eram previstas.

“Mais do que nunca, nos sentimos determinados a nos ajoelhar ao longo desse torneio. Aceitamos que possa haver reações adversas e vamos apenas ignorar isso e seguir em frente”, indicou o treinador da Inglaterra, Gareth Southgate, antes da estreia na Euro 2020.

Outro momento em que o racismo teve de ser discutido foi o que sucedeu a decisão do certame. Após a derrota nas penalidades máximas para a Itália, os ingleses Marcus Rashford, Jadon Sancho e Bukayo Saka, que desperdiçaram suas cobranças, foram hostilizados covardemente, especialmente nas redes sociais. Todo esse cenário gerou complicações para o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, acusado de não dar resposta efetiva às vaias às manifestações antirracistas performadas pelos atletas ingleses.

Uma das vozes mais influentes do país, a do antigo lateral direito da seleção inglesa e do Manchester United, Gary Neville, foi enfática nesse sentido: “Algumas semanas atrás, Gareth Southgate e os jogadores […] disseram que iam se ajoelhar para promover a igualdade e a luta contra o racismo. O primeiro-ministro disse que estava tudo bem para a população de seu país vaiar esses jogadores que estão tentando promover igualdade e lutar contra o racismo. Tudo começa no topo”, disparou.

Dentro dos campos, a Euro 2020 exibiu aquilo que os amantes do esporte esperavam. Houve bom futebol, surpresas e decepções. Também foram vividas emoções, tendo sido aflorados bons sentimentos de identificação nacional durante o certame. Quando atuaram em casa, os países disputantes, e que também tiveram uma de suas cidades como sede, foram bem recebidos e apoiados.

Houve espaço para cenas de reconhecimento, como as homenagens recebidas pelo macedônio do norte Goran Pandev. Em seu último jogo por seu país, o veterano recebeu uma camisa personalizada de seus rivais holandeses. “Esse é o final de minha carreira por minha seleção. Estou feliz por dizer adeus dessa maneira. Estou feliz por me aposentar dessa forma. Posso dizer que não poderia ter desejado um adeus melhor”, falou o atacante de 37 anos.

O mundo também viu verdadeiras pinturas serem concluídas durante a Euro 2020. O gol do tcheco Patrick Schick contra a Escócia; o petardo do ucraniano Andriy Yarmolenko ante a Holanda; ou o tento de trivela de Luka Modric também em face dos escoceses testemunham nesse sentido. Histórias de luta heróica foram escritas, como a das quadrifinalistas Ucrânia e Suíça. Isso sem falar na maior narrativa de superação do certame: a da Dinamarca que, depois de viver o drama da quase-perda de Eriksen, chegou às semifinais e foi eliminada com polêmica.

Também a campeã Itália redigiu mais uma página de sua rica história. Em crise quase constante desde o tetracampeonato mundial de 2006, mostrou que podia praticar um jogo mais moderno, sem perder a solidez defensiva evidenciada por sua dupla de zaga veterana, formada por Giorgio Chiellini e Leonardo Bonucci.

Euro 2020 - campea Italia - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria
Itália, campeã da Euro 2020

Jogos empolgantes e disputados foram a tônica de um certame em que cada detalhe valeu o suor dos jogadores — não por acaso, das 15 partidas dos mata-matas, oito avançaram à prorrogação, e quatro aos pênaltis.

A Euro 2020 se revelou um torneio inesquecível.

Teve a emoção esperada e trouxe o efeito inebriante de que o mundo precisava, em meio a uma das mais duras eras da humanidade. Porém, algumas sirenes de alerta foram ligadas. Não ficou claro se a resistência ao diferente está aumentando na Europa; ou se as minorias estão ficando mais isoladas. Contudo, tornou-se evidente que os grupos de pessoas que não reconhecem humanidade nessas minorias é grande.

Mais uma vez, o esporte assumiu o papel de porta voz social: expôs o bem, a alegria, e o regozijo dos povos, mas também algumas mazelas da sociedade europeia. Uma competição centrada em apenas um país dificilmente teria produzido tantas sensações.

*Fotos de UEFA, via Getty Images.