Último Grande Prêmio disputado no Brasil, em 2019, e é usada na página oficial da Fórmula 1.
A Fórmula 1 é o esporte mais tecnológico do mundo. Basta contrapor os modelos atuais com as imagens dos carros que participaram da primeira edição do campeonato mundial da categoria, disputada em 1950, para se constatar a brutal evolução dos monopostos de lá para cá.
É na sintonia fina entre essas complexas máquinas e os homens por trás delas (dirigentes das equipes, projetistas, engenheiros, estrategistas, mecânicos e, evidentemente, pilotos) que os pódios e campeonatos são decididos.
Até mesmo em razão dos elevados investimentos que demanda, os quais afugentaram inúmeras equipes ao longo dos anos, a Fórmula 1 é regida por um intricado regulamento, sem o qual seria impossível a manutenção de um mínimo de competitividade. É o regulamento que garante, também, a imposição de limites ao dinheiro que pode ser gasto na criação e desenvolvimento de um carro vencedor.
Em sua versão mais recente, o regulamento da Fórmula 1 está dividido em três conjuntos de regras diferentes, com a adição de um documento de 47 páginas que contém as normas específicas sobre o teto orçamentário.
Há também o Pacto da Concórdia, que, em linhas gerais, é um grande acordo sobre questões comerciais e de governança firmado entre a Federação Internacional de Automobilismo (FIA), as equipes e o Formula One Group, que detém os direitos de exploração comercial da Fórmula 1.
Grande parte do trabalho de bastidores daqueles que participam da categoria envolve destrinchar e interpretar as regras esportivas, técnicas e orçamentárias que regem a mais nobre competição do automobilismo mundial.
No Brasil, grande mercado consumidor da categoria e cuja bandeira esteve 101 vezes no lugar mais alto do pódio, com 8 títulos e 8 vices mundiais do campeonato de pilotos[1], o interesse do grande público pelas regras da Fórmula 1 foi maior nos momentos em que a icônica disputa entre Ayrton Senna e Alain Prost deixou as pistas para envolver também as decisões da FIA, então comandada pelo francês Jean-Marie Balestre.
Para os brasileiros que acompanham o esporte de forma mais profunda, no entanto, continua sendo impossível dissociar a Fórmula 1 do emaranhado de regras e “letras miúdas” que pode selar o destino de uma temporada tanto quanto (ou até mais do que) uma ultrapassagem ou uma parada desastrada nos boxes.
Interpretar regulamentos e julgar situações a partir deles está na essência da atividade jurídica, inclusive no universo do esporte. Convidamos a jornalista Julianne Cerasoli para falar conosco sobre temas relevantes dessa interseção entre a Fórmula 1 e o mundo da regulação.
Escrevendo sobre a categoria desde 2010 e com mais de uma centena de coberturas in loco, nas pistas, paddocks e onde mais o circo da Fórmula 1 ganha vida, a Ju, como é conhecida, assina uma coluna no UOL, é produtora da TV Band nas corridas e colabora em publicações internacionais, além de conduzir um blog que já indicamos por aqui e de possuir um projeto de financiamento coletivo no Catarse que viabiliza um conteúdo primoroso, de forma exclusiva, para os apoiadores.
Confira o nosso papo!
Blog: Em sua excelente autobiografia[2], o engenheiro britânico Adrian Newey, responsável por carros que venceram 10 campeonatos mundiais de Fórmula 1, afirma que a parte do trabalho da qual ele possivelmente mais gosta é estudar atentamente o regulamento técnico e entender o que o documento efetivamente determina, e não qual seria a intenção por trás de cada regra, e se essa sutil diferença permite alguma inovação.
Ele resume a tarefa da seguinte forma: “Como posso usar esse regulamento para tentar algo que nunca foi feito antes?”
Em sua cobertura da Fórmula 1, o quanto esse trabalho interpretativo descrito pelo Adrian Newey aparece para quem está “de fora”?
Existe transparência nos processos que envolvem discussões das equipes sobre a eventual existência de irregularidades/interpretações que extrapolam o regulamento ou informações a respeito só são divulgadas no início e após o julgamento definitivo de cada caso?
O episódio envolvendo o motor da Ferrari na temporada 2019 serviu para alguma mudança positiva em termos de accountability por parte da FIA ou nada parece ter mudado?
Ju: A FIA nesse sentido fica em um papel de certa forma semelhante ao da WADA na luta contra o doping no esporte: toda a pesquisa para interpretar o regulamento de uma maneira que vai ajudar cada equipe é infinitamente maior dentro das equipes, então o órgão regulador sempre estará um passo atrás.
O exemplo da Ferrari fechou uma brecha no regulamento, mas quem encontrará a próxima será uma outra equipe, e não a FIA. Quem muito provavelmente terá o poderio para suspeitar e investigar o que está acontecendo em um primeiro momento será uma rival, e a FIA, que fica em uma posição técnica e financeiramente muito inferior, só vai intervir quando essa equipe questionar a rival (o que se faz primeiro questionando se um elemento X é legal).
É impossível para a FIA fiscalizar todos os carros o tempo todo. Eles têm feito uma checagem completa por prova, mas ainda assim eles dependem muito dos outros apontarem algo errado. Simplesmente não têm funcionários e equipamentos para tal.
Blog: Nesse mesmo livro, Adrian Newey suscita uma importante reflexão, com a qual ele se deparou nos anos em que trabalhou na Fórmula Indy: o dilema que projetistas e engenheiros enfrentam na concepção de um carro ao terem de conciliar performance e segurança dos pilotos.
Na sua opinião, o regulamento da Fórmula 1, ao estabelecer os requisitos de segurança, protege suficientemente os profissionais que criam e preparam um carro em termos de possível responsabilização quando ocorre algum acidente?
Esse assunto já foi superado ao longo dos anos desde o que aconteceu em Ímola na temporada de 1994 ou a existência de riscos de responsabilização civil e criminal continua a ser um drama perceptível no cotidiano das equipes?
Depois de um acidente como o de Romain Grosjean no GP do Barein na temporada passada, a segurança do esporte ainda é questionada em algum ambiente no âmbito da categoria?
Ju: Existe a possibilidade de responsabilização criminal se o regulamento não for cumprido ou se algo falhar por negligência, por exemplo. Imagino que os contratos sejam bem amarrados nesse sentido, inclusive.
Na credencial usada pelos pilotos, por nós jornalistas ou pelos VIPs, sempre há a inscrição “automobilismo é perigoso”. É como se você, ao fazer parte daquele evento, compreendesse que alguém pode não sair com vida dali.
A avaliação é que o risco é inerente ao esporte, ainda que todo o trabalho seja feito para minimizá-lo ao máximo.
Blog: “Toto” Wolff, chefe da Mercedes desde 2013, um dos profissionais de maior sucesso na história da Fórmula 1 e uma das figuras de maior evidência nos últimos anos, acumula outras funções no esporte, como o envolvimento na gestão de carreira de pilotos de equipes concorrentes, casos de Sebastian Ocon, da Alpine, e George Russell, da Williams, equipe na qual Wolff detinha participação acionária (a venda dessas ações, que teria ocorrido em 2016, não chegou a ser completada em um primeiro momento).
Durante alguns anos, “Toto” Wolff era também responsável pela gestão de carreira de Valtteri Bottas, posição da qual se afastou formalmente quando o piloto finlandês foi contratado pela Mercedes em 2017.
Apesar dos movimentos feitos justamente para evitar controvérsias, há questionamentos sobre possível conflito de interesses em virtude dessa múltipla atuação de “Toto” Wolff?
Em uma indústria com tantos segredos e confidencialidade, como o tema conflito de interesses é tratado na categoria relativamente aos pilotos vinculados a uma equipe que possuem também algum tipo de ligação com outra, como o citado George Russell, por exemplo, que chegou a declarar recentemente que vê Lewis Hamilton e Valtteri Bottas como companheiros de equipe, e não como adversários?
Ju: As ações da Williams foram vendidas quando a equipe passou para o controle do grupo de investimento Dorilton, e “Toto” Wolf, hoje, é acionista da Aston Martin (da empresa, não da equipe).
O conflito de interesses parece ser inerente à F1. Basta lembrar da questão do campeonato de construtores x campeonato de pilotos, que faz com que pilotos da mesma equipe sejam ao mesmo tempo aliados e adversários. Temos também Raikkonen como acionista de seu próprio time, por exemplo.
Essa parte comercial parece derivar do poderio financeiro de algumas empresas e pessoas (no exemplo de Wolff, a Mercedes apoiava esses pilotos e “Toto” era o chefe da operação dos alemães na F1, logo, é difícil separar um do outro).
Em última análise, como o conflito de interesse é tão comum, todos tentam estar do lado certo, do lado mais poderoso, não sendo essa uma questão ética problemática.
Blog: Em relação à pauta da diversidade na Fórmula 1, como você avalia o impacto gerado pela presença de profissionais como Stephanie Travers (engenheira química da Petronas nascida no Zimbábue e convidada pela Mercedes para subir ao pódio na temporada de 2020) e Ellie Norman (diretora de marketing e comunicações da Fórmula 1) na categoria?
Essa visibilidade de mulheres e representantes de minorias em posições de destaque tem contribuído para dar concretude a campanhas como a We Race As One? Você acredita que as chefes de estratégia das equipes (quase metade destas têm mulheres na função) recebem menos crédito e atenção do que mereceriam?
Ju: Nenhuma delas chegou ali devido à campanha, mas sim por caminhos trilhados há muito tempo. E também não me parecem buscar um reconhecimento extra por serem mulheres, então não diria que elas recebem menos crédito.
O que acontece é que suas falhas são apontadas com mais força. É difícil encontrar quem não tenha opiniões sobre cada uma das mulheres do paddock que estão em posições proeminentes (opiniões que poucas vezes têm relação com o lado profissional) e isso não acontece na mesma proporção com os homens, já que seu status é naturalizado.
Blog: O que se diz atualmente na Fórmula 1 sobre a presença da categoria em países que possuem histórico de violação de direitos humanos?
A lógica do “money talks” prevalece ou há algum movimento em sentido contrário por parte de quem detém o poder de decisão?
Ju: A última corrida que estreou no campeonato foi no Azerbaijão. Além do retorno à Holanda, a próxima estreia será na Arábia Saudita. Qual o país que mais ajudou a F1 na pandemia, colocando-se à disposição para fazer corridas e inclusive vacinar os profissionais da categoria quando o acesso aos imunizantes era mais restrito? O Bahrein. Não dá para ver uma mudança em relação a esse tipo de preocupação.
Blog: Dá para mensurar o quanto o sucesso da série Drive to Survive (Netflix) contribuiu para a presença de novos patrocinadores (especialmente do mercado norte-americano) na Fórmula 1?
Você vê chances de que, diante desse sucesso e do alcance de uma nova base de consumidores, montadoras tradicionais que hoje estão fora da categoria possam encarar a pesada taxa de US$ 200 milhões exigida para a entrada de novas equipes?
Ju: Essa taxa é mais simbólica do que real, podendo ser retirada se os demais concordarem. Basicamente, é um seguro contra aventureiros.
O sucesso do Drive to Survive aponta para a Fórmula 1 qual o caminho, mas ainda haverá um período de transição. Atualmente, há uma parcela significativa do dinheiro que é dividido entre a Liberty e as equipes que vem de contratos longos com TVs a cabo europeias, que vão se encerrar nos próximos anos e não serão renovados, pelo menos não nos valores exorbitantes acordados há cinco, dez anos.
O streaming estaria pronto para ocupar, comercialmente, essa lacuna?
Hoje, diria que ainda não. A Netflix foi importante para tornar a F1 relevante para um público totalmente novo, mas não resolve todos os desafios comerciais a médio prazo.
Blog: Para a Fórmula 1, os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia (o chamado Brexit) ficaram dentro das expectativas ou as dificuldades práticas têm sido maiores do que o esperado?
Aproveitando esse tema, como você, que mora na Inglaterra, diria que os ingleses enxergam o Brasil na atualidade em relação à Fórmula 1?
E por falar em Brasil, a distante possibilidade de um novo circuito no Rio de Janeiro ganhou alguma tração quando foi ventilada ou sequer podemos considerar que foi algo levado a sério?
Ju: O trabalho relacionado ao Brexit que as equipes fizeram antes da temporada começar foi impressionante, enviando caminhões para a França só para entender qual era a papelada e o que poderia dar errado. Essa preparação fez com que os problemas fossem minimizados, ainda que seja difícil prever como o Brexit vai afetar a atratividade do Reino Unido por parte de talentos europeus e vice-versa a médio e longo prazos.
Sobre o Brasil, há uma relação ao mesmo tempo de apego pelos números que o país traz para a F1, já que é o maior país (em termos populacionais) em que a categoria tem boa visibilidade, além de ser mostrada em TV aberta, e a desconfiança porque nem tudo é entregue da maneira como prometido.
A chefia da F1 levou muito a sério o projeto do Rio, a ponto de pressionar o governo a dar a licença ambiental, já que era um cenário perfeito para o que eles queriam da etapa brasileira (pelo fato de o Rio ser uma cidade mais atrativa do ponto de vista turístico, por estar oferecendo muito mais dinheiro, pelas limitações até territoriais de Interlagos e, não menos importante, para desfazer amarras com o ex-dono Bernie Ecclestone). Mas o paddock em si sempre esteve com um pé atrás. Não é um privilégio nosso ter projetos que acabam não se concretizando.
Esperamos que tenham gostado da nossa conversa com a Julianne Cerasoli!
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[1] Para que você possa conhecer mais sobre essa história, recomendamos a obra O Brasil na Fórmula 1: os títulos e as vitórias que transformaram o Brasil no país do automobilismo, de Alexandre Armando Vasconcelos, publicado pela Alaúde Editorial.
[2] How to Build a Car: The Autobiography of the World’s Greatest Formula 1 Designer.
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